20.2.08

Provas Finais de Arquitectura 004*

#A Arquitectura do Sonho Alheio
Francisco Varela do Vale

#
A emoção força a imaginação, arrebata o espírito e leva-o a criação do desejo e do significado das coisas. Coisas que ora são supérfluas ou necessárias, por força do poder reivindicativo do corpo e do tempo. "A imaginação tem todos os poderes: ela faz a beleza, a justiça, e a felicidade, que são os maiores poderes do mundo." [1]. Seja na condição de Deus, da vontade própria, do poder dos sentimentos e emoções. "Vivemos [nas palavras de Paul Valéry] pelo poder das coisas que não existem." E estando a vida repleta de imaterialidade que funda as coisas no fundamento do fundamento, isto é que sustenta as coisas no profundamente infundamentável, na moral – que nas palavras de Friedrich Nietzsche “é o instinto do rebanho no indivíduo” –, apenas podemos esperar da vida e das coisas um constante inacabado. Pois elas sempre poderão ser visadas por novas interpretações que as adulterem, enriqueçam, modifiquem e até mesmo aniquilem.

A arquitectura é um “inacabamento” que visa o sonho, o sonho alheio que o ofício do arquitecto terá que infligir a ele próprio, isto é, a necessidade de confluir a vontade dele e do cliente, a única possibilidade da vontade como acção. Acção que se fragmenta quanto mais se predispõe a entender-se – e daí o índice deste trabalho estar dividido nas várias etapas da vontade. Tudo na vida se caracteriza por esse estado inacabado, mais sentimental do que material, de uma finitude cíclica. “Uma das atitudes fundamentais do homem humano deve ser a de reconhecer em si, numa falta de compreensão ou numa falta de acção, a origem das deficiências que nota no ambiente que vive…” [2].

A natureza apenas é natureza para nós, a realidade apenas o é para cada um de nós; o sentimento o é porque já o é em nós. Assim a felicidade é uma inexistência, “um subproduto a luz de uma boa vida”, que se faz palpável em nós, na imaterialidade do sentimento. Não é nem nunca foi um estado contínuo, por isso é faseada por momentos no qual o objecto surge como muleta de uma fragilidade intrínseca. Um layer base onde são depositados desejos, numa sucessiva sobreposição translúcida de outros layers; diluindo-se uns nos outros.

A casa é uma plataforma, um layer inerte, cuja ordem é um pretexto para sermos alguém ou algo; sentirmos isto ou aquilo que já sabemos que queremos sentir, na verdadeira ascensão da felicidade, já existente em nós. Tal como o rolo fotográfico está desde logo disponível a deixar a luz penetrar e sensibilizar o indispensável, para que neste fique registrado a imagem, que só o será realmente na abstracção das nossas capacidades mentais. Mais que uma ordem é a ideia da ordem que para lá projectamos, e aprendemos a necessitar desde os primórdios.

Recuando a esses mesmos primórdios, constatamos que o homem teve em si essa intrínseca necessidade e desejo de ordenar, controlar e dar significado ao meio que o envolvia, de modo a diminuir o enorme fosso que o separava, e separa, a sua parca existência e debilidade física a grandeza intemporal e imperceptível da natureza. Como sabemos as cavernas terão sido os primeiros habitats dos nossos antepassados, nos quais se procedeu, a partida, a primeira organização do espaço. Esta mais relacionada, a priori, com uma estratificação de causa efeito, acto consequência, mais “animalesca” do que propriamente de organização social, tendeu para uma sucessiva subida de complexidade a medida que o próprio animal se desenvolvia em direcção a humanidade e ocasionalmente descobria a controlar elementos da natureza que sempre existiram. Negando a passividade.
A ordem terá passado de necessidade a desejo, e da simples sobrevivência física houve uma passagem para a vivência e a necessidade de transformação, contemplação e de exorcizar medos. Produziram-se manualmente objectos, habitats; surgiram os primeiros indícios de decoração dos mesmos, numa progressiva aproximação e tentativa de transpor algo real para um determinado suporte inerte. Gastando tempo e esforço, pintaram-se cavernas e elevaram-se megalítos pela única razão de ser digno de razão, num circunstancial tempo passado e que nos afigura hoje como mágica ritualização do oculto.

De uma dada observação e percepção da natureza e da sua existência o Homem entendeu que poderia exercer influência sobre o mundo que o rodeia, e que a arte e uma dada ordem lhe possibilitava uma relação mais estreita com a natureza. Aproximando-se progressivamente da total esquematização simbólica da sua existência, entendeu-se, pensou-se, resumiu-se, desejou-se e negou-se ciclicamente. O resultado estético dessa constante reformulação não é mais que uma consequência secundária do objectivo principal – encontrar-se a ele próprio. “É este horizonte desde sempre posto” que interessa; esse sonho individual de nos encontrarmos, e que a determinado momento da humanidade – moderna –, sem o saber conscientemente muitas vezes, o arquitecto assume quase como timoneiro.

A arquitectura é essa tarefa infinita de encontrar o lugar para o ideal, na impureza do mundo real, “matérico”, factual, múltiplo e incontornável. Por isso a pretensão de objectivismo na arquitectura, é uma ingenuidade, porque ela credibiliza-se pela subjectividade criadora da imaginação, que não pode estar contida na totalidade em nenhum objectivismo técnico.

Baseando-se na pulsão, na pressão, na transformação, na recriação, no paradoxo da emoção… do corpo com a terra, só podemos justificar a acção prática sobre o mundo pretensiosamente. Uma estrutura base individual e comum que remete para uma visão da vida, consciente ou não, partilhada ou não. O conhecimento dessa estrutura, não pode ser alcançado ou exposto de modo completamente válido pelo objectivismo do fundamento. De outro lado, nenhuma arquitectura pode ser autêntica sem um tal conhecimento. As questões estéticas escapam à razão, por isso a ingenuidade passa a ser o único limite da arquitectura. Desconsiderando o seus limites e/ou fundamentos a arquitectura tornar-se-á ingénua, no momento que pretender não a musealização do habitar, mas sim a sua purificação. Para tal “os caminhos não são claros” [3], nunca o são; a casa para toda uma vida, será assim sempre uma obra inacabada, que a bem dizer só se deveria começar a construir-se depois de feita, ultrapassando-se constantemente.

Hoje, creio que a distância entre uma boa ou má obra de arquitectura é tão pequena como aquela que separa o feio do belo, o justificável do injustificável. É tão ténue que facilmente ambas podem faltar à essência da arquitectura: a vida. Esta sopra para lá do que pensamos querer.
*[texto sobre a Prova Final do curso da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto]
################################################
#referências [3 livros essenciais]
[1] Pascal, Blaise.
[2] Da Silva, Agostinho.
[3] Siza, Álvaro Vieira; “Profissão Poética”. Editora Gustavo Gili 1988, pág.9.

################################################